Martinho da Vila

Noel só gostou mesmo da Lindaura, com quem casou-se para morrer, pois já estava tuberculoso, mas sua paixão era Ceci, a Dama do Cabaré. Com esta queria viver uma vida a dois, mas ela era como ele, de muitos amores. Sempre foi o preferido de Ceci, mas sentiu que estava sendo preterido pelo jornalista Mário Lago, jovem como Noel, mas o inverso dele - bonito e sempre bem vestido, fino. Tratava Ceci como uma dama, mas não de cabaré, da sociedade. Levou dançarina pela primeira vez a um teatro, o que muito a sensibilizou. Sinalizou para Noel que seu coração estava dividido e que não pretendia abrir mão do seu novo amor. Desesperado, ele decidiu abandoná-la, mas pediu que Ceci satisfizesse o seu último desejo carnal. Foi atendido. Inspiradíssimo e apaixonado, compôs uma das suas últimas criações, um samba de despedida, dela e da vida: "Esse amor que não me esqueço/ E que teve seu começo numa festa de São João/ Morre hoje sem foguetes, sem retrato e sem bilhetes, sem luar e sem violão."
A família do sambista era da classe média e, como até hoje, a classe média passava por grandes problemas financeiros. Mesmo assim Noel estudava no tradicional Colégio São Bento e entrou para a Faculdade de Medicina, curso que abandonou para viver na boemia e atuar na vida artística.
Desfeito o Bando dos Tangarás ao qual pertencia, Noel foi convidado por Francisco Alves a integrar um grupo para fazer uma grande excursão pelo sul do Brasil. Os Ases do Samba era formado por Peri Cunha (bandolim), Nonô (piano), Mário Reis, Francisco Alves e Noel Rosa. Chico Alves com seu vozeirão, Mario Reis com a sua clássica doçura e Noel, que tocava um violão básico, tinha uma pequena voz, mas que se destacava por ser carismático, alegre e com muito ritmo no seu jeito particular de cantar.
Nesta excursão aconteceu um fato interessante. Francisco Alves, o líder, exigia que todos se apresentassem em traje a rigor, que Noel detestava. Em Porto Alegre ele saiu com seu terno branco e não apareceu na hora do show. O público apupava e o espetáculo começou sem Noel. No final a plateia aplaudia, mas não arredava pé, esperando por ele, que chegou propositalmente atrasado, um tanto embriagado e todo sujo. Chico Alves ficou possesso: "Que papelão, hein, seu malandro irresponsável!" Mario Reis falou: "Mete ele no palco assim mesmo. Não dá mais tempo de tomar banho." Noel entrou meio cambaleante, o povo riu, mas ele se impôs. Quando cantou o Gago Apaixonado, foi um sucesso estrondoso. Todos voltaram para o número final com seus trajes pretos e Noel de branco. A partir daí ele nunca mais usou o smoking.
Todo mundo admirava o Poeta da Vila, ninguém se furtava a sua companhia, mas também falavam mal dele: "Só vive metido com mulher da vida e vagabundo." "Não sei o que ele vai fazer nos subúrbios. Coisa boa não pode ser." "Prefere as tendinhas do Estácio e da Mangueira aos bares da Galeria Cruzeiro e do Café Nice." "Só gosta de pé sujo. Nunca vai na Confeitaria Colombo."
Noel fez uma bela crítica a seus críticos com o samba Filosofia: "O mundo me condena e ninguém tem pena/ Falando sempre mal do meu nome/ Deixando de saber se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome."
Neste ano de 2010 muito se falou sobre o Poeta da Vila, mas ele é tão grande que sempre há algo a acrescentar. Concordo com tudo que Cartola disse no samba, ainda inédito, Cadeira Vazia: "Eu quisera esquecer o passado/ Eu quisera mais sou obrigado / A lembrar do velho Noel/ Velho Noel/ Ainda resta a cadeira vazia/ Na Escola de Filosofia/ Do Bairro de Vila Isabel."
Noel nasceu em 1910, assim como Nássara, Custódio Mesquita, Haroldo Lobo, Luiz Barbosa, Claudionor Cruz, Manezinho Araújo, Vadico e Adoniran Barbosa, mas este espaço de 12 meses ficou conhecido como o Ano Noel Rosa porque ele "transformou o samba neste feitiço decente que prende a gente" e além das suas músicas atuais até o tempo atual, criadas em cerca de 7 anos dos seus vinte e sete de vida, Noel foi um baluarte na luta contra preconceitos: o social, andando pelos subúrbio, subindo morros; o musical, que havia contra cantores músicos populares, empunhando o violão e cantando no rádio; o racial, fazendo parcerias com compositores negros (Alcebíades Barcelos, Armando Marçal, Zé Pretinho, Brancura, Heitor dos Prazeres, Cartola, Donga, Ismael Silva) e até o sexual, porque tinha amigos gays e dedicou o samba Mulato Bamba ao lendário Madame Satã.
O gênio foi muito homenageado no seu centenário, mas o maior laurel foi feito pela nossa Escola, com o enredo Noel - A Presença do Poeta, cantando o samba que fiz, creio, iluminado pelo seu espírito: "Se um dia na orgia me chamassem/E com saudades perguntassem por onde anda Noel/Com toda minha fé responderia/Vaga na noite e no dia/Vive na terra e no céu..." Que pena Noel ter descansado tão cedo! Certamente seríamos parceiros em alguns sambas de enredo para a Unidos de Vila Isabel, escola do bairro onde não nasci, mas do qual, em artes, herdei o nome.
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